Entre o Ruído e a Realidade: Quando a Imprensa Distorce e o Presidente se Sabota

Na última terça-feira (28), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva esteve na Paraíba para entregar um dos ramais da transposição do Rio São Francisco — uma obra que muda a realidade de milhares de nordestinos que, por gerações, conviveram com a seca e a escassez de água.

Era, sem dúvida, um dia para falar sobre água, desenvolvimento, cidadania e dignidade. Mas parte expressiva da imprensa nacional escolheu outro caminho: destacou uma frase polêmica do presidente durante seu discurso:

“Deus permitiu que a seca chegasse no sertão porque sabia que eu seria presidente para matar a sede do povo.”

A declaração, de gosto questionável e retoricamente infeliz, serviu de combustível para transformar o que deveria ser a celebração de uma conquista histórica em mais um round da eterna guerra de narrativas.

Quando o presidente ajuda a desviar o foco

É preciso reconhecer que a imprensa, muitas vezes, escolhe o caminho da polêmica fácil. Mas também é verdade que, não raras vezes, o próprio presidente parece trabalhar contra si mesmo — e, pior, contra a centralidade dos fatos.

Lula, mestre na comunicação popular, tem, ao mesmo tempo, o defeito de se deixar levar por metáforas exageradas, frases de efeito desnecessárias e, ocasionalmente, comentários que desviam completamente do tema principal.

Quando faz esse tipo de declaração — misturando Deus, destino e missão pessoal —, dá munição gratuita para quem prefere pautar o noticiário pela polêmica do que pelo impacto real das políticas públicas. É como se, por instantes, o presidente esquecesse que, na era das redes, qualquer palavra fora do tom vira manchete, meme ou escândalo instantâneo.

O episódio da China: quando se repete o roteiro

Essa tendência não é isolada. Ela se repete. Na viagem à China, em abril de 2023, Lula protagonizou uma das maiores agendas internacionais do Brasil na última década. Foram cerca de R$ 30 bilhões em acordos comerciais, envolvendo tecnologia, energia limpa, agronegócio, infraestrutura e inovação.

Mas o que dominou parte da cobertura? O suposto “quebra de protocolo” protagonizado pela primeira-dama, Janja da Silva, que teria feito uma pergunta ao presidente Xi Jinping durante a cerimônia oficial.

É evidente que há ali uma escolha editorial equivocada. Mas, novamente, parte do desgaste também recai sobre a falta de preparo na comunicação do próprio governo, que parece não entender, ou subestimar, que qualquer deslize — por menor que seja — será ampliado, distorcido e, muitas vezes, colocado acima dos fatos concretos.

Quando a palavra vale mais que a obra

O roteiro se repete há anos. Na inauguração de etapas da transposição em 2017, durante o governo Michel Temer, a pauta virou uma disputa mesquinha sobre quem deveria receber os créditos pela obra — se Temer, Dilma, Lula ou até Fernando Henrique, que iniciou estudos preliminares. E a imprensa, claro, mergulhou de cabeça na narrativa da rivalidade, deixando em segundo plano a água que começava a chegar às comunidades do semiárido.

O mesmo padrão se viu na pandemia, quando a chegada das vacinas gerou mais espaço para tretas políticas entre governadores, prefeitos e o então presidente Jair Bolsonaro, do que para informações objetivas sobre imunização e saúde pública.

O jogo do framing — e o jogo da comunicação mal feita

Existe, sim, um problema sério de enquadramento jornalístico (framing). A busca pelo clique fácil, pelo engajamento, pela manchete chamativa, faz com que a imprensa, muitas vezes, prefira a espuma do que a substância.

Mas há também um problema de comunicação política. Um governo que tem dificuldade em proteger a própria narrativa, que frequentemente permite que o improviso, o excesso de autoconfiança ou a vaidade do discurso pessoal sobreponham-se à importância dos atos de governo.

O que deveria estar nas manchetes

Na Paraíba, o título deveria ser:

“Água chega ao sertão: milhares de famílias deixam para trás o sofrimento da seca com a entrega de novo ramal da transposição.”

Na China, a manchete honesta seria:

“Brasil e China firmam R$ 30 bilhões em acordos que fortalecem economia, tecnologia e desenvolvimento sustentável.”

Mas, em ambos os casos, o que ficou foi o trivial: a frase fora de tom, o gesto fora de protocolo, o detalhe que vira manchete e enterra o essencial.

Entre a imprensa que distorce e o presidente que se sabota

O problema é duplo — e é preciso ter coragem para dizer isso. De um lado, uma imprensa muitas vezes refém da lógica da polêmica, do viral, do superficial. De outro, um presidente que, apesar da enorme capacidade política e de comunicação, por vezes se perde no excesso de informalidade, na tentação da frase de efeito e no gosto pelo improviso, que nem sempre cabe no cenário institucional.

O jornalismo que precisamos — e o governo que precisa entender a comunicação que faz

O jornalismo precisa refletir sobre o papel que exerce: se quer ser instrumento de informação, formação e serviço público, ou se quer ser apenas uma fábrica de ruído.

O governo, por sua vez, precisa compreender que, no mundo da hiperconexão, não há espaço para descuido comunicacional. Cada palavra é lupa, cada gesto é análise, cada deslize vira tempestade.

Informar é uma missão pública. Governar, também. E ambos — imprensa e governo — deveriam lembrar que, no fim das contas, quem paga a conta do ruído, do desvio de foco e da guerra de narrativas é sempre o povo.

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