A cena jurídica brasileira foi surpreendida pelo voto do ministro Luiz Fux, no julgamento dos réus acusados de envolvimento na tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, durante a crise golpista que teve como ápice os atos de 8 de janeiro.
Em seu voto, Fux sustentou a condenação de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro e delator premiado, afirmando que ele participou ativamente da engrenagem que visava corroer as bases institucionais da República. Segundo o ministro, o papel de Cid foi essencial para a difusão de narrativas golpistas, para a operacionalização de estratégias digitais de mobilização e para a articulação de setores militares em torno da ruptura democrática.
No entanto, no mesmo voto, Fux advogou pela absolvição de Jair Bolsonaro, que fora acusado de liderar, instigar e se beneficiar diretamente do movimento golpista.
Essa decisão gera um paradoxo lógico e político-jurídico: como condenar o delator — cujo valor probatório repousa justamente na relação hierárquica com o delatado — e ao mesmo tempo absolver a figura central a quem ele subordinava sua conduta?
O papel do delator e a coerência da decisão
O instituto da delação premiada não é isento de críticas, mas seu funcionamento pressupõe um vínculo de causalidade entre os fatos narrados e a responsabilização de agentes de maior hierarquia. Em outras palavras: a delação serve como ferramenta para punir quem manda mais do que quem obedece.
Se Mauro Cid é condenado por atuar como parte de um plano golpista, é razoável perguntar: quem se beneficiava desse plano? Quem era o destinatário político da ação?. A resposta natural seria o ex-presidente, já que era dele que emanavam as ordens, as narrativas e o horizonte de poder a ser conquistado em eventual ruptura.
Absolver Bolsonaro nesse contexto enfraquece a própria lógica da condenação de Cid. Fux, ainda que juridicamente embasado em lacunas probatórias diretas contra o ex-presidente, cria a percepção de que o soldado é punido, mas o general é poupado.
O paradoxo ético e político
Esse descompasso abre espaço para críticas mais amplas:
- No campo ético, a decisão pode ser lida como um desincentivo ao instituto da colaboração premiada. Afinal, se o delator é punido mesmo colaborando e o suposto mandante é absolvido, que valor tem a confissão?
- No campo político, a decisão gera a narrativa de impunidade em relação a lideranças, reforçando a percepção de que a Justiça brasileira pune elos frágeis, mas hesita em responsabilizar figuras centrais.
- No campo institucional, a contradição abala a coerência do STF, pois passa a mensagem de que a prova é suficiente para condenar um executor, mas não para responsabilizar o principal beneficiário.
O voto de Luiz Fux ficará marcado como um episódio de paradoxo judicial. Ao condenar Mauro Cid e absolver Jair Bolsonaro, o ministro abre um flanco de críticas sobre a coerência interna das decisões do Supremo.
Mais do que uma questão de técnica jurídica, trata-se de um dilema sobre a efetividade da Justiça em punir lideranças políticas que atentam contra a democracia. Ao punir o executor e absolver o comandante, corre-se o risco de inverter o princípio de responsabilidade: em vez de proteger o Estado Democrático de Direito, a Justiça pode acabar reforçando a cultura da impunidade entre os mais poderosos.